O mito urbano



Andar na rua, é bom porque podemos observar muita coisa. 

Há certos dias, por aqui, que o tempo parece que nos transporta para outro lugar. Tenho ouvido os hóspedes dizerem e as madrinhas também, que Sintra tem uma atmosfera mágica, que é diferente. E, nestes dias em que a neblina desce, da serra, em mantos diáfanos sobre a vila eu acho que entendo o que elas querem dizer. 

O dia amanhece escuro e assim permanece toda a manhã. O nevoeiro torna o nosso pêlo pegajoso e só nos apetece ficar abrigados da humidade. Mas, é verdade que há um certo encanto no nevoeiro… permite-nos imaginar toda uma vida paralela. 

As sombras difusas das pessoas e objetos levam-nos a percorrer os caminhos do imaginário… quem ali vem? Será o famoso D. Sebastião? (seja lá ele quem for…) ou será algum mito urbano? 

Prefiro pensar nesta última hipótese e deixar o meu pensamento felino correr livremente …. Ah sim, tem um chapéu na cabeça e é alto, muito mais alto que o normal… veste um sobretudo de abas largas e parece trazer uma caixa nas mãos… não parece humano… mas sim um desses seres sobrenaturais, que assomam pelas vielas escuras à meia noite (sim é verdade, já vi vários, mas isso fica para um outro dia). 

Este ser anda vagarosamente, como se transportasse algo pesado. É uma caixa …. deve trazer um monstro pesado dentro… ou será uma armadilha?... daquelas antigas com uma engrenagem em ferro que se fecha sobre nós e nos aprisiona para sempre. Rouba-nos a alma e deixa-nos meio moribundos sobre os telhados. 

Nesses dias nebulosos, temos de andar com mil cuidados. Nada de nos deixarmos dormir em qualquer lado, sem sabermos o que pode acontecer. Eu bem aviso os meus sobrinhos mais novitos e conto-lhes histórias de arrepiar em que eles ficam todos encolhidos e com os pêlos em pé (eh eh eh), são apenas histórias e não lhes fazem mal. Mas eles são atrevidos e quando veem estas sombras que se aproximam de nós ficam na dúvida, mas sempre com vontade de brincar…. Só querem dormir e brincar …. Não fazem mais nada na vida …. 

Mas nada de dispersar as ideias, pois os passos aproximam-se e agora posso ver mais detalhadamente os contornos e os meus olhos arregalam-se de medo. Transporta mesmo algo volumoso nas suas mãos, o que faz com que o seu andar seja vagaroso e arrastado. Mas agora vejo que na sua cabeça não tem um chapéu como inicialmente pensei, mas sim algo estranho …. Parecem os chifres de um veado!! Deve ser um demónio …. Enorme ….! 

Encolho-me no meu canto e tento passar desapercebido, mas eu tenho um pêlo amarelo e branco (lindo, modéstia à parte), mas que nestas alturas não permite que esteja camuflado pelas plantas onde me escondo. 

Não é uma caixa o que ele transporta…. Mas sim algo redondo, um barril? Vai-nos afogar após roubar as nossa almas?! Ainda bem que todos se esconderam…. Quer dizer nem todos … o meu sobrinho mais pequeno anda a saltitar por ali, mesmo no caminho por onde o demónio vai passar. 

Chamo-o, mas ele não me liga, olha para mim e mia satisfeito. “Foge” digo-lhe em gatês, mas ele saltita em direção ao demónio. Não posso deixar que seja apanhado … é meu sobrinho e é novito, nem gozou ainda nenhuma das nossas sete vidas … 

Saio do meu canto e vou atrás dele. Para o apanhar terá de passar por cima do meu cadáver! Corro, pois o sobrinho dirige-se mesmo para a boca do lobo. E quando me aproximo, paro de repente! O demónio estende uma mão para agarrar o pequeno e este deixa-se ficar, deve estar hipnotizado, só pode! Mas…. Há um cheiro familiar no ar. 

Aproximo-me devagar e o nevoeiro dissipa-se lentamente conforme encurto a distância entre nós, e o cheiro familiar envolve-me. Ah, o objeto que transportava foi colocado no chão …. 

“Miaaaauuuuuuu!”grito, quando a mão agarra o meu sobrinho elevando-o nos ares. Disparo numa corrida para tentar salvá-lo quando uma voz bem conhecida exclama: “Orange, já não me conheces? “ 

Parei estarrecido, bem próximo e agora que o nevoeiro se dissipa, vejo o quanto as brumas são traiçoeiras…o cheiro familiar… e afinal era o vizinho que carregava um grande vaso com uma árvore de troncos nus. 

“Finalmente vamos arranjar o jardim e trouxe esta árvore para plantar, anda deixa-me fazer-te umas festas” murmurou o meu mito urbano. E eu deixei, é claro. 

O nevoeiro é mesmo traiçoeiro!!

Comentários

  1. Viva,

    Gostei de conhecer melhor aqui o nosso personagem principal (confesso que a cor dos gatos que mais gosto é o amarelo mas atualmente o meu é negro), que vive numa linda cidade, tem quem olhe por ele e alguem que se preocupa com os seus sobrinhos.

    passarei de imediato para o seguinte :D

    Abraço

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    1. obrigada amigo Fiacha pela visita, em breve sairão mais crónicas assim que a preguiça me abandone... isto de ser gato escritor tem o seu trabalho..... tem que se lhe diga ....

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